30 abril 2024

Você tem inimigos?

Muitos cristãos podem respondem a esta pergunta de forma apressada e dizer: “De forma alguma! Eu me dou bem com todos”. Entretanto, antes de assumir para si esta resposta, é preciso pensar na pergunta por uma perspectiva bíblica.

Cristãos que entendem que não têm inimigos precisam ser lembrados das palavras de Jesus: “Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por isso o mundo vos odeia”. (Jo 15.19). Diante deste texto, a verdade inequívoca é que sim, cristãos têm inimigos.

Mas por que isto ocorre? É preciso olhar para o livro de Gênesis a fim de entender isso. Após a queda o Senhor, ao amaldiçoar a serpente, disse: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3.15).

Esta inimizade é vista já no capítulo 4. Caim matou a seu irmão Abel após terem prestado o culto em que o primeiro foi rejeitado ao passo que o segundo foi aceito pelo Senhor. Caim é da descendência da serpente enquanto Abel descende da mulher. É claro que esta descendência não é física, mas espiritual.

O Novo testamento mostra isso claramente. Sobre Abel o livro de Hebreus testifica que ele “obteve testemunho de ser justo, tendo aprovação de Deus quanto às suas ofertas. Por meio dela, também mesmo depois de morto, ainda fala” (Hb 11.4). Já sobre Caim, João diz: “Porque a mensagem que ouvistes desde o princípio é esta: que nos amemos uns aos outros; não segundo Caim, que era do Maligno e assassinou a seu irmão; e por que o assassinou? Porque as suas obras eram más, e as de seu irmão, justas” (1Jo 3.11-12).

Se você continuar a leitura do texto de João, verá que após este exemplo ele afirma: “Irmãos, não vos maravilheis se o mundo vos odeia” (1Jo 2.13), ou seja, Caim era parte do mundo que estava em oposição aos crentes.

Cristãos precisam manter esta verdade em mente: Qualquer um que não confesse a Cristo e que, por isso, não é contato dentre os filhos de Deus, é inimigo de Jesus, portanto, também inimigo dos cristãos.

Isto pode assustar a alguns, principalmente os que têm parentes não crentes. Talvez alguém diga: “Em minha família somente eu sou cristão, mas todos amam uns aos outros”. Como eu já mencionei é preciso pensar biblicamente. O amor é listado em Gálatas como fruto do Espírito Santo. Como esperar que alguém que não tenha o Espírito Santo ame de forma bíblica?

É claro que existe afeição entre não crentes. Entretanto, o “amor” ensinado por este mundo é autocentrado, diferente do amor bíblico que “não procura seus próprios interesses” (1Co 13.5). Tanto é assim que um dos conselhos fundamentados no modo de vida deste mundo orienta que, por amor-próprio, é preciso afastar-se daqueles que fazem mal a você.

Mesmos parentes ou amigos chegados que não creem em Cristo são seus inimigos, se você é mesmo um cristão! Eles são parte do mundo que odeia o seu Senhor. Contudo, diferente deste mundo e das falsas religiões, o cristianismo tem uma maneira santa de lidar com os inimigos. A ordenança de Cristo é: “Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam” (Lc 6.27).

Este amor tem como modelo o próprio amor do Senhor. Conforme Paulo, “Deus prova seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores (Rm 5.8), ou seja, sendo nós, ainda seus inimigos, pois é isto que pecadores são. Quando Deus ordena que os seus filhos amem os inimigos não está pedindo nada que já não tenha feito em favor deles.

O Salmo 2 anuncia que os homens em seu pecado estão em rebeldia, querendo se livrar do Senhor. Deus, que estabeleceu o seu Rei, ri das arrogantes pretensões destes homens e convoca todos a beijarem o Filho antes que ele se irrite, porque dentro em pouco sua irá será derramada. Enquanto não chega o grande dia da ira do Cordeiro, por meio da proclamação da Palavra, Deus continuará transformando inimigos em filhos, pois “a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem em seu nome” (Jo 1.12).

Cristãos que não compreendem corretamente a realidade da inimizade do crente com este mundo e o que é o verdadeiro amor, acabam agindo de forma errada. Por dizerem amar os seus parentes e amigos não crentes, não pregam para eles com medo de estragar a relação e virarem desafetos ou mesmo inimigos. Desta forma, demonstram um amor mundano, pois amam apenas a si mesmos e querem preservar aqueles que lhe são caros.

Ironicamente, se enxergassem seus parentes e amigos não crentes como inimigos, iriam amá-los verdadeiramente e, por saberem a verdade de que como inimigos de Deus eles caminham para a perdição, evangelizariam e os chamariam ao arrependimento, mesmo sob o risco de perder a amizade deles, o que somente constataria a realidade: quem não ama a Cristo, não ama também a sua igreja.

Não demonstra amor verdadeiro quem vê seus queridos caminhando para a perdição e não os avisa, com medo de que se afastem. Você, como cristão, tem muitos inimigos. Dentre eles estão até seus queridos que não amam a Jesus. Enxergue-os como de fato são e, por amor a Deus e a eles, conclame-os a beijar o Filho. Enquanto a sua ira não se inflama, há tempo de inimigos tornarem-se filhos amados do Pai Celestial.

27 março 2024

A sarça representa Deus?

E nas redes sociais continua a polêmica acerca da série The Chosen. A questão discutida é se a série configura ou não a quebra do 2º mandamento. Bem antes da atual polêmica, mais precisamente em dezembro de 2022, eu estava expondo mais uma vez os 10 mandamentos, desta feita em nossos cultos da manhã, e como de costume destaquei um trecho em que citei a série como exemplo da quebra do 2º mandamento e coloquei em minha rede social.

A razão para meu posicionamento é a resposta à pergunta 109 do Catecismo Maior de Westminster, “Quais são os pecados proibidos no segundo mandamento?”. Dentre outros pecados estão o “fazer qualquer imagem de Deus, de todas ou de qualquer das três Pessoas, quer interiormente no espírito, quer exteriormente, em qualquer forma de imagem ou semelhança de alguma criatura; toda adoração dela, ou de Deus nela e por meio dela;”.

Note que a resposta traz dois pecados distintos: um é o de fazer qualquer imagem e o outro de adorar por meio delas. Isso não deveria ser motivo de espanto para nenhum reformado, tampouco para os presbiterianos, pois o testemunho das confissões e de muitos irmãos piedosos a este respeito é abundante.

Pois bem, em meio à atual polêmica, um perfil do Instagram repostou o trecho que já estava na internet há mais de um ano, mas desta vez houve muitas reações. Fui dar uma olhada nos comentários e, em meio à muitas ofensas gratuitas, duas questões me chamaram a atenção.

A primeira foi o comentário que dizia que a preocupação maior de um presbiteriano não é ser cristão, mas ser presbiteriano de forma correta. O irmão que fez tal comentário, não sei se sem pensar ou por total falta de discernimento, ignora o fato que dentro do cristianismo há tradições diferentes. Só para ficar no âmbito protestante, isso seria o mesmo que condenar um pastor batista que se esforça para ensinar a um membro de “sua” igreja que pediu para batizar seu bebê que tal prática é errada. Se ele está dentro de sua tradição, seria uma bobagem eu dizer que a preocupação maior de um batista não é ser cristão, mas ser batista do jeito certo.

Pela graça de Deus sou um ministro presbiteriano! Como tal, subscrevo e reconheço como sistema expositivo de doutrina e prática a Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve de Westminster. Sou chamado a ensinar um rebanho de cristãos presbiterianos, conforme o que entendemos ser o fiel ensino das Escrituras e que está exposto nos símbolos de fé.

Somos cristãos e, dentro do grande número de denominações existentes, temos uma identidade específica, sendo herdeiros de uma rica herança doutrinária. É claro que me preocupo em sermos presbiterianos da forma correta. Fosse se outra forma eu seria um perjuro, um desonesto, que jurou fidelidade às Escrituras, conforme a interpretação dos símbolos de fé, mas somente da boca pra fora. Concordo plenamente com o Rev. Boanerges Ribeiro: “Ninguém nos obriga a ser presbiterianos. Mas, se queremos sê-lo, sejamo-lo honradamente”.

A segunda questão que me chamou a atenção tem a ver com o título do presente texto. Um irmão comentou que é curioso o fato do símbolo da IPB ser justamente a sarça que, segundo ele, representa a presença de Deus e que este símbolo não seria aceito por nenhum dos delegados de Westminster que escreveram a confissão que subscrevemos.

Mas será que as coisas são, de fato, assim? Penso que não é algo tão difícil de se descobrir! A primeira sessão da Assembleia ocorreu em 1º de julho de 1643, reunindo 121 teólogos na Abadia de Westminster, em Londres, e terminando seus trabalhos em 1653.

Aaron Denlinger, professor de História da Igreja e Teologia Histórica no Reformation Bible College, escreveu um artigo intitulado O símbolo da sarça ardente na história da Igreja. O artigo está postado no site do Ligonier para mostrar “por que a Bíblia de Estudo da Reforma usa o símbolo da sarça ardente”.

No artigo ele aponta que um grupo de ministros huguenotes, reunidos em 1583 para sua reunião de sínodo, entenderam que

“a sua igreja deveria ter um selo oficial, algo que pudesse ser afixado nas decisões oficiais de seus sínodos, servido assim como um sinal da autenticidade e autoridade delas” [...] “No seu centro estava a sarça ardente retratada em Êxodo 3 – aquela sarça de onde Deus falou a Moisés e finalmente revelou seu nome: ‘Eu sou quem sou’. No meio da sarça, o nome de Yahweh estava gravado em letras hebraicas. Num padrão circular ao redor do arbusto apareceu a frase latina Flagror non consumor – ‘Eu queimo, [mas] não sou consumido”[1].

Isto quer dizer que, pelo menos 60 anos da Assembleia de Westminster, “a incipente Igreja Reformada da França” já utilizava este símbolo. Logo, certamente era ele de conhecimento dos delegados de Westminster. Prova disso é que com o restabelecimento do presbiterianismo em 1690, a Igreja da Escócia começou a usar o símbolo meio que por acidente, como aponta Denlinger no mesmo artigo, pois o encarregado por imprimir as atas das assembleias anuais resolveu “incluir na página de título do primeiro e dos subsequentes Atos da Assembleia publicados uma imagem circular da sarça ardente, completa com a frase latina sobrescrita Nec tamem consumibatur (ainda não foi consumido)”.

A tese de que nenhum dos delegados de Westminster aceitariam tal símbolo, portanto, não se sustenta. Mas fica ainda uma questão. Como poderiam aqueles que condenaram qualquer representação das Pessoas da Trindade acatar como símbolo uma imagem que representa Deus? Isto não é, no mínimo, incoerente?

Se esta fosse a resposta, provaria algo que nós já sabemos. Eram homens pecadores. Contudo, neste caso, não houve incoerência. A questão é simples: eles não consideravam a sarça ardente uma representação de Deus.

É fácil constatar isto. Em seu comentário de Êxodo, o pastor puritano Mattew Henry (1662-1714) diz que

“a sarça ardia no fogo, porém não se consumia. Esta era uma representação da igreja que agora estava escravizada no Egito, queimando nos fornos de cozer tijolos, mas que não se consumia. Perplexos, mas não desanimados, abatidos, mas não destruídos”[2].

Spurgeon, que viveu muitos anos depois de Henry (1834-1892), em suas notas no comentário do Salmo 119.153 registra:

“Olha para a minha aflição. Estas orações de Davi são escritas com tal sabedoria celestial que são convenientes para a condição de toda a igreja e de cada um de seus membros. A igreja é a sarça que arde com o fogo, mas não pode ser consumida; cada membro da igreja traz uma parte da cruz de Cristo; os membros jamais estarão sem aflição, e por este motivo precisam orar, como Davi: ‘olha para a minha aflição’”[3].

Entretanto, bem antes de Henry e Spurgeon, João Calvino (1509-1564) comentou:

“É verdade que falamos um pouco da sarça ardente. É comum que Deus aplique os sinais às coisas com uma certa probabilidade, e esta é quase a ordem e o modo comuns dos sacramentos. Além disso, esta foi a coisa mais adequada que poderia ter sido mostrada a Moisés, para confirmar sua fé no presente negócio. Ele sabia em que estado havia deixado sua nação. Embora houvesse um número maior de homens, eles não eram diferentes de um arbusto. Pois quanto mais espessa for a sarça, e quanto mais arbustos ela tiver, mais sujeito estará a pegar fogo, para que possa queimar por todos os lados; portanto, o povo de Israel era apenas um bando fraco e exposto a todos os ferimentos; e essa multidão nada guerreira, sendo pressionada até mesmo com seu próprio peso, incensou a crueldade do Faraó apenas com o sucesso próspero do aumento. Portanto, o povo sendo oprimido pela tirania cruel é, por assim dizer, uma pilha de lenha incendiada em cada canto, e não há nada que o impeça de ser reduzido a cinzas, exceto isto, porque o Senhor está sentado no meio dele; e embora o indubitável fogo da perseguição tenha ardido então, ainda assim, porque a Igreja de Deus nunca está livre de aflições no mundo, seu estado contínuo é, de certa forma, pintado neste lugar. Para que outra coisa somos senão combustível para o fogo? E espalham-se continuamente inúmeras marcas de fogo de Satanás, que incendiam tanto nossos corpos como também nossas mentes; mas o Senhor nos livra e nos defende, por sua maravilhosa e singular bondade, de sermos consumidos. Portanto, o fogo precisa queimar, para que possa nos queimar nesta vida; mas porque o Senhor habita no meio de nós, ele nos preservará de tal forma que as aflições não nos farão mal, como também é dito no Salmo 46 ( Salmo 46:5 )”[4] (Google tradutor).

Está bem claro que para Henry, Spurgeon e Calvino a sarça não é uma representação de Deus. A sarça representa a Igreja que, apesar de sofrer no decorrer da história, não será consumida pelo fogo da aflição por contar com a presença do Senhor no meio dela. O Salmo 46.5 citado por Calvino aponta exatamente para isso: “Deus está no meio dela; jamais será abalada; Deus ajudará desde antemanhã”.

Não! A sarça não represente Deus, mas a Igreja! Você pode até discordar da interpretação dos nossos irmãos do passado, mas não pode acusá-los de ser incoerentes, tampouco dizer que eles não aceitariam a sarça ardente como um símbolo da igreja. Eles não só aceitariam, como este é um símbolo que perdura há séculos nas igrejas reformadas.

Quanto a mim, como ministro presbiteriano que sou, continuarei ensinando as Escrituras, conforme a interpretação dos símbolos de Westminster, os quais subscrevi em minha ordenação. Continuarei admirando a sarça usada pelos presbiterianos e por reformados ao redor do mundo, concordando plenamente com Henry, Spurgeon, Calvino e muitos outros. Continuarei empenhado em convencer os presbiterianos a serem presbiterianos de fato.

Quando aos irmãos de outras denominações, continuarei a respeitá-los, ainda que discordem da minha posição. Meu problema não é com eles, mas com supostos presbiterianos que querem transformar a nossa igreja em outra denominação. Reverberando as palavras do Rev. Boanerges digo: Se querem ser presbiterianos, que o sejam honradamente.


[1] https://www.ligonier.org/learn/articles/symbol-burning-bush-church-history acessado em 27/03/2024

[2] Mattew Henry. Comentário Bíblico AT vol. 1 – p. 765

[3] C. H. Spurgeon. Tesouros de Davi vol. 3 – p. 498

[4] Calvino comentando Atos 7.30